Ir para o conteúdo principal

Quando os teoremas mentem — e por que isso deveria te preocupar

PETiscos Matemáticos

Na matemática, os teoremas costumam ocupar um lugar de reverência. São tratados como verdades absolutas, imutáveis — diferentes das conjecturas, que ainda aguardam por uma demonstração formal. A diferença parece simples: uma conjectura é uma hipótese, um teorema é um fato. Uma vez provado, um teorema se torna incontestável — ou pelo menos é assim que muitos veem. No entanto, será que essa visão realmente reflete a prática matemática?

Um exemplo histórico interessante envolve as funções contínuas em todo ponto, mas não diferenciáveis em nenhum. Em 1806, na Academia de Berlim, Ampère apresentou uma prova que supostamente mostrava que toda função contínua teria, ao menos, um ponto onde fosse diferenciável. A prova foi aceita até que, no final do mesmo século, Weierstrass apresentou um contraexemplo que contradizia completamente essa afirmação: uma função contínua em todos os pontos, mas diferenciável em nenhum. A função proposta por Weierstrass foi:

$$ W(x) = \sum_{n=0}^{\infty} a^n \cos(b^n \pi x) $$

onde \(0 < a < 1\) e \(b\) é um número ímpar positivo tal que \(ab > 1 + \frac{3\pi}{2}\). Essa função, conhecida como função de Weierstrass, é contínua em todos os pontos, mas não diferenciável em nenhum. Hoje sabemos que a prova de Ampère estava incorreta, e há centenas de outros exemplos que reforçam esse fato.

O mais interessante é que tais episódios não pertencem apenas ao passado. Ainda hoje nos deparamos com “teoremas” que não gozam da unanimidade que se espera de uma verdade matemática. Um dos exemplos mais emblemáticos dos tempos recentes é o chamado teorema de Mochizuki, que trata da famosa Conjectura abc,

\(\forall \varepsilon > 0\), existem inteiros coprimos \(a, b\) e \(c\) tais que \(a + b = c\) com \(c > \text{rad}(abc)^{1 + \varepsilon}\) apenas finitamente muitas vezes.

Em 2012, Mochizuki publicou uma série de artigos afirmando ter provado a conjectura, mas a comunidade matemática, após mais de uma década, ainda não chegou a um consenso. Há quem chame seu resultado de “teorema de Mochizuki”, enquanto outros continuam a tratá-lo como uma conjectura não resolvida. A polêmica surge porque a teoria é extremamente difícil de compreender, mesmo para especialistas, e Mochizuki recusou-se, por anos, a escrever exposições mais acessíveis ou a responder perguntas detalhadas de críticos. Atualmente, o Japão aceita como válida a prova de Mochizuki, enquanto boa parte da comunidade internacional ainda a considera incorreta. A matemática, que se pretende tão objetiva, depende, no fim, da validação por pares — e do entendimento coletivo.

Imre Lakatos, filósofo da matemática, em seu livro Provas e Refutações, oferece uma visão particularmente interessante sobre esse fenômeno. A obra é estruturada como um diálogo entre professor e alunos, no qual uma demonstração matemática é constantemente questionada, modificada e ajustada à medida que surgem contraexemplos. Lakatos propõe que a matemática não avança por provas infalíveis, mas por um processo dialético de tentativa e erro, em que as ideias são refinadas, e as definições evoluem junto com os teoremas. Isso significa que não devemos considerar um teorema como definitivamente verdadeiro, mas apenas como ainda não refutado. Uma vez que um contraexemplo é encontrado, o teorema é ajustado, possivelmente com um domínio de validade mais restrito. Essa abordagem desmonta a ilusão de uma matemática perfeita e imune a falhas — revelando uma ciência profundamente humana, feita de debates e revisões.

Se nem todo teorema é tão sólido quanto imaginamos, e se provas não são sinônimos de verdade, o que nos resta? Talvez o caminho seja abandonar a pretensão de infalibilidade e encarar a matemática como um processo em constante construção. Se Lakatos estiver certo, e todo teorema puder, um dia, ser abalado por um contraexemplo, cabe ao leitor refletir sobre quais verdades aceitou antes mesmo de compreendê-las — e sobre os riscos que isso impõe ao pensamento matemático. Afinal, valorizar a dúvida, questionar resultados, reconhecer os limites dos argumentos e entender que o erro, longe de ser um fracasso, é parte essencial de qualquer prática verdadeiramente humana — inclusive da matemática.